Autonomia

Gabriel Louback
4 min readMar 26, 2024

Nunca tinha acontecido antes: fui deixar minha filha na escola e quis ficar vendo o que ela faria depois de passar pelo portão. Com quem conversaria e do que brincaria, mas principalmente como conversaria e como brincaria, longe do meu olhar. Saí dali imaginando como é a vida dela sem mim.

Esse é apenas o segundo ano dela na escola (apesar dela sempre dizer que ia na escola lá no batey, a comunidade de haitianos que mora e trabalha na plantação de cana, onde trabalhávamos, na República Dominicana). Apesar d’eu também contabilizar como um ano de aprendizado lá, para ela, para o MEC, ela iniciou o segundo ano escolar dela. E eu acho que já sabia da importância disso, mas não sei se tinha noção da profundidade, ou do que isso significa.

Os primeiros anos da criança conosco são praticamente única e exclusivamente, bem, conosco. Acordar, passar o dia, comer, ir no banheiro, ir brincar, dormir. Tudo conosco. Existem as crianças que vão para a creche, com 6 meses — 1 ano, e existem as que ficam com babás. Conosco, não foi nenhuma das duas coisas.

Dois meses antes dela completar um ano, veio o lockdown da Covid. Os meses anteriores? Foram os quatro primeiros meses em outro país e, quando voltamos para o Brasil, nós em casa, voltando a nos adaptar e trabalhando de casa. E então, pandemia, quarentena, lockdown. Dois anos depois disso (ou seja, dois anos vivendo constantemente com ela em casa, nós sempre juntos), nos mudamos novamente de país. Mas nosso dia a dia continuou bem parecido: achamos que era nova para ir para a escola, em um novo país e nova língua, mas também não tínhamos condição de pagar por uma escola — e as que conseguíamos, não havia como levá-la, questão de estrutura local e também de não conseguirmos comprar um carro, mas isso é história para outro dia.

O fato é que um mês depois dela completar três anos, nós voltamos ao Brasil, metade do ano letivo. Sem escola. Assim, ela ingressou em sua primeira e tão esperada experiência letiva no ano que completou quatro anos. E então, tudo mudou.

Não só pelo fato de agora eu poder ter o período da tarde “livre” (divido entre o trabalho e os afazeres da casa), mas também por ela agora possuir um universo inteiro só dela, sem nossa presença. Ela tem amigos que não conheço e não sei o nome, tem conversas que não participo, aprende palavras que não ensino, chora lágrimas que não enxugo. Sim, sim, sou todo sentimental, eu sei. Mas não me importo. É o que sou.

Mas é muito louco ficar pensando nisso, nesse ser humano que tinha uma vida única e exclusivamente ao meu lado e que, agora, se desenrola e se desenvolve longe dos meus olhos, dos meus ouvidos e dos meus braços. E isso é zero sentimentalismo ou tristeza, falo sério. Só é muito doido. Pois a gente precisa meio que reaprender a se conectar com o que acontece fora da nossa esfera. Começa a existir uma troca ainda maior do que antes, se é que é possível. Pois acontecem coisas que não sei, e que ela precisa querer contar para mim, e confiar que pode contar. Ela vê coisas, ouve coisas, faz coisas, fala coisas que não vejo; e que quero saber, não para saber se está tudo correndo conforme o planejado, mas porque eu me interesso por ela. Eu não quero perder nenhum momento de quem ela é, do que pensa, do que faz, do que a forma e continua moldando ela a ser ela. Mas assim como ela vê coisas, fala coisas e faz coisas que não vejo, ela também ouve coisas que não vejo, e fazem coisas com ela que não vejo, seja um abraço, um elogio e carinho, ou algo que possa machucá-la. E aí, meu irmão, aí que o bagulho fica tenso e me quebra. Porque eu queria protegê-la, para sempre. Na verdade, eu acredito que vou protegê-la, para sempre; mesmo quando não conseguir. Mas queria protegê-la de coisas antes que elas acontecessem. Mas esse é um caminho sem volta. Não só isso: é um caminho necessário.

Uma das coisas que mais tenho pensado sobre (por que tenho vivido isso) é autonomia. A minha autonomia, e o quanto me custou, e quanto demorou, para que eu conquistasse uma autonomia que me é tão preciosa, e necessária. E como que eu não vou querer isso para minha filha? Que ela tenha autonomia? A única maneira dela conquistar isso é eu deixando que ela pratique essa autonomia, que ela “saia de baixo da minha asa”, que ela dê os passos dela, que ela trilhe o caminho dela, que ela tenha as lágrimas e os sorrisos que não verei — ainda que eu vá sempre querer saber quem causou as duas coisas.

Hoje entendo melhor meus pais. Em muitas coisas, em quase tudo.
Mas isso é uma história para outro dia.

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