Os ideais afastam a gente da vida que acontece

Gabriel Louback
5 min readMar 13, 2024

Uma baita ironia, mas eu comecei esse texto pensando no que seria o texto ideal, após o texto de ontem, e a vida simplesmente aconteceu. Esse texto de agora, o que você lê, eu queria ter escrito enquanto via o arroz terminando de cozinhar e o frango na air fryer demorando para ficar pronto, tudo isso enquanto minha filha gritava da sala se o almoço já estava pronto (assim que refoguei o arroz, ouvi “Nossa, papai, que cheiro delicioso, já posso experimentar a comida?”, e era 11:00 ainda, a gente almoça cedo por aqui).

Esse título do texto é de uma frase que o Alisson me disse ontem, de uma troca de áudios comum entre nós: a gente comenta alguma coisa, um fato ou ideia, e o que vem a seguir nunca sabemos direito de quem partiu, por mais que um de nós tenha expressado verbalmente o que estávamos pensando (mas o sentimento é de que aquele pensamento não é nosso, exclusivo de um dos dois, mas nascido desse encontro constante que temos, mesmo quando estamos há um tempo sem nos encontrarmos).

Eu queria ter escrito o texto enquanto fazia o arroz talvez pelo senso de urgência do momento (pode ser o Venvanse falando, tenho tomado alguns dias recentemente, o que traz uma enxurrada de pensamentos, um pouco mais de forma ordenada). Mas a verdade é que eu não sei exatamente o que teria escrito naquele momento. Sempre sinto que essa ferramenta, da escrita, é absurdamente insuficiente para expressar o que estamos sentindo ou pensando, mas ao mesmo tempo, é praticamente a única que conheço (ou que sei usar de forma que possa dizer “acho que domino isso”).

Quis escrever também enquanto calçava o tênis da minha filha, um pouco antes também, enquanto ouvia o áudio de um amigo que se separou recentemente e que dizia estar apaixonado e se sentindo vivo em um novo relacionamento. Pensando agora, lembrando na verdade, a frase do título veio da conversa com o Alisson depois de eu ter mandado o texto de ontem para ele, quando ouvi que, “o que pode morrer, deve morrer”, justamente pela natureza de não haver mais vida ali.

A frase é de Nietzsche, e o que o Alisson disse poderia ter sido dito por algum pastor evangélico, como já foi dito antes, eu ouvi, “Se ainda existe vida, não acabou”. No caso dessa conversa, tinha a ver com a ideia de que a potência da nossa vida reside na juventude, essa idealização de possibilidades infinitas e de potência sem medida, como se fosse algo exclusivo dos jovens. Claro, biologicamente, não tenho a mesma disposição e energia de 20 anos atrás, mas, modéstia à parte, 20 anos atrás eu não escrevia textos como o de ontem, ou esse de hoje.

A ideia aqui era comparar as potências, mas até isso me vejo conversando com o Alisson aqui, agora, mesmo sem ele estar comigo, que essa comparação é uma idealização também, de algo que era melhor antes em comparação a algo que quero afirmar que seja melhor hoje. Pode ser que seja, mas no espaço desse parágrafo, perdi honestamente o interesse nisso, na comparação.

O ponto que quero trazer é esse: que os ideais afastam a gente da vida que acontece. Me afastou quando tentei começar um texto hoje idealizando como seria a continuação de ontem. Me afastou, por um segundo, quando quis escrevê-lo enquanto preparava o almoço, ou arrumava minha filha para sairmos para a escola. A vida aconteceu, e muito, nesse tempo da manhã e agora, início da tarde. A ligação despretensiosa para uma amiga, que não falava há algum tempo, apenas para pedir um orçamento, desembocou em abrir de coração sobre os últimos acontecimentos da vida dela, e bem recentes, tão atual quanto o noticiário do dia: uma notícia bombástica de sua infância, que ela recebeu ontem, por carta, a primeira carta que seu pai escreveu para ela na vida, em quase 40 anos, e uma elaboração pós-terapia, de hoje cedo, algumas horas antes de eu ligar para ela, provavelmente enquanto eu percebia a hora de colocar o frango na air fryer e começar a cozinhar o arroz.

A vida que acontece, percebe?

Perguntei para o Alisson ontem qual era a diferença entre falarmos essa frase, e um coach, por exemplo, dizer a mesma coisa. Muito perspicaz, como o Alisson sempre é, ele me disse que essa frase nunca seria dita por um coach, justamente pela afirmação de desencanarmos do que é ideal, algo que eles fazem exatamente o contrário: a busca pelo ideal. “Ele é um treinador de empreendedores de si. Essas pessoas não querem encarar o que está aí e viver exatamente o que está posto. Eles não querem deixar a vida acontecer, pelo contrário: eles é que querem fazer a vida, ideal, acontecer.”

“O coach pode usar de ideias interessantes e provocadoras, abrindo a possibilidade para desdobramentos do pensamento. Mas eles fazem isso achatando a vida em uma finalidade, em algo utilitário; não para provocar a vida, mas para fazer dela, única e exclusivamente, produtiva. E isso é o que você sente de vazio na fala deles.”

Acho que eu não tinha entendido ontem, na totalidade, a profundidade e sentido disso que o Alisson trouxe — ou talvez tenha sido uma ideia minha, né? Vai saber. Mas isso me pegou demais agora, de vivermos como esses coachs, tentando fazer a vida acontecer, fazer dela algo que nos sirva.

Acho que meu cansaço talvez venha disso, de ter por muito tempo vivido dessa forma (se é que posso dizer “vivido” nesse caso, afinal, eu não estava vivendo a vida, estava tentando fazê-la acontecer). Mas sim, o cansaço pode ser em relação a isso. A cada momento, pensando que não era aquilo que deveria, ou poderia, estar acontecendo. Que eu poderia saber cozinhar melhor. Que eu deveria conseguir me desdobrar no trabalho em casa, seja na parentalidade, seja no meu ofício.

Que eu poderia ter mais tempo de escrever, acordar e caminhar e meditar e voltar e sentar e escrever meu romance. Sendo que eu nunca tive uma ideia para um romance. A vida possível, a vida acontecendo, é essa, eu sentando e escrevendo, novamente, com a louça suja na pia, a cama desarrumada e uma reunião de trabalho daqui a pouco.

Mas caraca, mano. Caraca. Quanta vida aconteceu hoje (e ainda estamos na metade do dia).

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