Universo de supernovas e elétrons

Gabriel Louback
4 min readMar 14, 2024

Assim, eu vou parar de falar disso, ou de me desculpar ao falar, mas o fato é que, de novo, a louça está lá na pia, me esperando. Hoje está menor: primeiro, tenho lavado a louça da janta à noite, sem deixar acumular para o dia seguinte, e segundo, que hoje só requentei o arroz lá do outro texto, aqueci o feijão de segunda-feira (dia que a companheira faz home office — e cozinha também), e fritei uma picanha para mim e para a minha filha (eu ia dizer que “fiz a picanha”, para não entregar a atrocidade de colocar uma picanha na frigideira e um fio de azeite, mas né, quem estou querendo enganar? A resposta seria você, mas a pergunta a ser feita é: Por quê? Por que eu queria te enganar? Se você ainda não assistiu à nova temporada de True Detective, com a Jodie Foster, faça isso. Se você nunca viu True Detective, veja a primeira temporada, uma obra-prima).

Mas talvez a louça na pia seja o meu combustível, o meu deadline sem um deadline a ser cumprido (descobri depois do diagnóstico de TDAH o motivo para sempre deixar as coisas para a última hora). Mas é só um artifício dizer isso, da louça ser o meu motivador, a verdade é que eu sempre demoro para lavar, mesmo quando passei os últimos sete meses com esse período da tarde sem a filha em casa, e não estava escrevendo absolutamente nada. Minto, não estava escrevendo nada “assim”, escrevi uma bagaceira de roteiros, ideias, planejamentos, propostas e emails (a situação criativa em termos de escrita livre está, estava?, tão feia que até email contabilizo).

Mas o fato é que hoje vim aqui escrever e não faço ideia do que. Eu ia escrever sobre religião, na verdade, sobre entendimentos que tenho tido sobre minha espiritualidade e a minha relação com a tradição na qual cresci. Fico criando mundos e cenários, conversas e diálogos na minha cabeça, geralmente com pessoas reais, do meu dia a dia, mas não exclusivamente. Dessa vez, fiquei imaginando minha filha perguntando: “Pai, em que igreja você acha que eu deveria ir?” e a pergunta não fez sentido algum. Tipo, que? Como assim? Eu dizer que igreja eu acho que você deve ir. Vai na que você se sentir bem, na que você gostar, tiver amigos, comunidade etc. Mas a pergunta descabida não parece tanto assim, quando a gente percebe que é isso que as pessoas fazem com Deus, geralmente. “Deus, que igreja eu devo ir? Qual faculdade eu devo cursar? Com quem eu devo me casar?” Tipo, que?

Mas desisti do assunto (por enquanto). Como você pode ver, deu apenas um parágrafo.

Depois, pensei em fazer uma narrativa como nos outros dias, do que aconteceu até o momento, eu descendo para jogar futebol com minha filha, ensinando fundamentos básicos do jogo: dominar a bola, tocar, correr com domínio (e sério, que orgulho, ela sacou rapidinho e já dava para ver a evolução do momento em que entramos na quadra para os últimos exercícios que fizemos. Aliás, fizemos um exercício funcional juntos, ela sempre pede pra fazer exercício, então coloquei o app para rodar, com as instruções e desenhos mostrando os movimentos, fiz o meu funcional pela primeira vez em quase dois anos, e ela ficou feliz de ficar me imitando).

A destruição dos ideais que nos afastam da vida que acontece, né?

Mas justamente por isso, senti que era um ideal crescendo dentro de mim, o ideal de um texto a escrever, ou uma série de textos. “Agora será assim, todos os dias, sempre, dessa forma”. Sei lá. Eu gostei bastante dos textos anteriores, não sei se estou gostando tanto desse, mas só vamos, sabe?

Os ideais x a vida que acontece.
O ideal seria eu escrever sobre um assunto único, um tema. Algo que eu tenha autoridade para falar. Essa reflexão veio da conversa com uma amiga, que leu os textos anteriores e me disse que eu deveria, sim, escrever um livro. E no processo de novamente ficar indagando o assunto e temas, ela me disse que eu tinha autoridade sobre muita coisa, e poderia escrever tudo isso. Mas justamente a minha maldição é justamente o que sempre considerei uma benção: ser um generalista, um especialista em tudo — ou seja, não ser especialista em nada. Mas é uma benção ainda, por que isso teria mudado? Sempre foi. É o meu natural. Me aprofundar nas generalidades, me aprofundar no assunto da amplitude, me aprofundar nesse universo de supernovas explodindo e de elétrons circundando núcleos atômicos.

Falei para ela que não me sentia com autoridade para falar sobre nada, em relação a tudo o que já vivi.

Menos uma coisa: sobre mim. Pela primeira vez, disse, eu me sentia com autoridade para falar sobre mim, embora tenha sempre falado, mas dessa vez, era eu que ia contar essa história.

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